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O doping da pesagem

Atualizado: 23 de ago. de 2018



É uma sexta-feira, 18h00 no horário local. O lutador de MMA, Darren Till inicia seu corte de peso para a luta principal do UFC Liverpool (UFC Fight Night 130) que ocorrerá no domingo, mas a pesagem ocorre no sábado. Ele precisa perder exatos 5kgs. Toda sua equipe o assiste correr na esteira com roupas térmicas. Quase 1h depois, o vídeo corta para um Darren Till exausto em uma cama de ar pedindo para sua equipe tirar seu tênis. Till parte agora para uma sequência de 5 rounds de boxe para continuar com a perda de peso. Em seguida, e mais exausto, Till dorme por 20 minutos. A perda de peso, no entanto, não pode parar e é colocado sobre ele uma pilha de cobertores e toalhas. Mais um corte no vídeo. Agora vemos um Till já exausto e desitratado indo para uma seção de sauna com sua equipe. Na cena seguinte, 45 minutos depois, Till sai literalmente, rastejando da sala em direção à balança. A balança indica uma perda de 2,5kg, apenas 50% do objetivo. Till volta para a sauna e 10 minutos depois recebe um aviso médico para parar. O corte é interrompido. Às 5h da manhã, praticamente sem dormir, Till retoma com o corte de peso. Na esteira e com diversas camadas de roupas, Till para com a corrida. Ele alega uma cegueira temporária por conta da severa desitratação. Ele é carregado de volta para a cama de ar. Pouco depois sua equipe o leva para a sauna e a saúde de Till piora. Em respeito a Till, a equipe que o acompanha interrompe as filmagens.


Till não conseguiu bater o peso. Ele ficou 1,7kg acima do exigido. Ainda assim, a luta contra Sthepen Thompson ocorreu. Till venceu a luta em uma polêmica decisão dos arbitros (muitos viram uma vitória de Thompson, nós discordamos).


A perda de peso antes das lutas, para a pesagem é algo comum nos esportes de luta. Mas cada vez mais vemos atletas bem acima de suas categorias adotando uma estratégia agressiva e arriscada de um corte severo de peso para migrarem para categorias abaixo. Assim, podem ficar mais pesados que seus adversários e garantir o fator força como uma estratégia para vitória. Mesmo não batendo o peso, essa é uma tática vantajosa para os atletas. Eles sofrem uma penalização em suas premiações, mas garante uma ascenção no ranking de suas divisões, ficando mais perto de uma disputa de cinturão.


Neste começo do ano a mídia especializada chamou atenção para a grande quantidade de atletas penalizados pelo excesso de peso e saindo de suas lutas vitoriosos. Fizemos um levantamento com outros anos e os dados corroboram com a tese de que entrar com excesso de peso para as lutas de fato tem uma grande influencia sobre o resultado final. Sabendo disso os atletas tem cada vez intensificado essa estratégia, perdendo mais peso que o "normal" para uma luta e até sem se importar com punições em suas bolsas. Nitidamente fora de sua divisão natural, Yoel Romero é um exemplo. Recentemente, Romero ultrapassou o limite da divisão dos médios em duas disputas consecutivas do cinturão interino, perdendo assim o direito de disputar o cinturão. O lutador insiste em não subir para a divisão dos meio-pesados (até 93kg).


Apenas em 2018, em 9 (excluindo as lutas canceladas) ocasiões, atletas do UFC (organização escolhida para a pesquisa por conta do maior número de eventos e com registros mais precisos) não conseguiram ficar no peso de suas respectivas divisões. Em sete (ou 77%) dessas lutas o atleta que ultrapassou o peso acabou saindo vitorioso. Portanto, em apenas duas ocasiões apenas (28%) o atleta ficar no peso da categoria saiu vitorioso (Gillian Robertson que venceu Molly McCann no UFC Fight Night 130 e Robert Whittaker no UFC 225). Se estrapolarmos nossa amostra para os anos anteriores a tendência se repete. Em 2017, foram registradas no UFC, 21 lutas com atletas sobre-peso, das quais em 11 (52%) estes atletas saíram vitóriosos.  Em 2016, a tendência se repete. Das 20 lutas (ex-lutas canceladas) com questões envolvendo peso, 13 delas (65%) o atleta sobre-peso saiu vitorioso. Os dados são significativos e falam por sí só: ultrapassar o limite de peso de uma categoria, seja ela qual for, compensa. O atleta é punido financeiramente, mas garante uma ascendência nos rankings.

Pior que representar uma espécie de "doping" para os atletas, o corte severo de pesos traz diversos riscos à saúde dos lutadores. Relembrando o fato ocorrido com Darren Till, poucos dias antes, Rafael dos Anjos em uma coletiva de imprensa também relembra o corte de peso brutal que teve que passar para defender seu cinturão contra Eddie Alvarez no UFC Fight Night 90 (ele perdeu para Alvarez por nocaute ainda no 1R). "Desmaiei três vezes e apaguei e voltei. Fiz isso provavelmente três vezes. Numa das vezes, fiquei fora (do ar) por três minutos. Quando caí de volta na banheira, quase bati a parte de trás da cabeça na pia. Poderia ter morrido. Essa foi uma luta que eu não deveria ter lutado, mas tudo acontece por um motivo. Fiz, perdi e aprendi muito com isso."


Em sequência, no UFC Mexico, Rafael dos Anjos enfrentou (e perdeu) Tony Ferguson, também pela divisão dos leves. Depois de mais um corte severo de peso (e também motivado pelas duas derrotas consecutivas) ele decidiu subir de categoria. "Depois de ganhar peso, não consegui ficar de pé por 40 minutos a uma hora. Deitei no chão, no corredor do hotel, no meu quarto, na porta do meu quarto. O cara disse: "Ok, Rafa, é hora de ganhar peso", e não conseguia me levantar. Simplesmente não pude andar. Mas fiz isso." relembra o brasileiro.


Há dois anos, para proteger a saúde dos atletas o UFC mudou o horário da pessagem oficial das 16h para às 10h, assim os lutadores teriam mais tempo para se reidratarem e recuperarem o peso ideal. Assim os lutadores chegariam mais inteiros para a luta. No entanto, a medida gerou o efeito contrario. Com mais tempo para se recuperarem, a mudança de horário estimulou os lutadores a arriscarem com o corte severo de peso. Com a nova regra, o triplo de lutadores não conseguiu ficar no peso de suas respectivas categorias.

Por conta disso, o UFC voltou atrás. A pesagem oficial voltará a ser às 16h como era antes. No twitter a imensa maioria dos lutadores foi obviamente contra. Acreditamos que o UFC e outras organizações tem a obrigação de cada vez mais aumentar o rigor e dificultar ao máximo o corte de peso dos lutadores. A busca de um peso extra na luta é claramente (e os números não mentem) um dooping legal. E pior, a perda excessiva e brusca de peso para a pesagem traz riscos graves a saúde dos altetas.


Silvio e Flavio Doria

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